domingo, 4 de maio de 2008

O Balão Amarelo, Clevane Pessoa

O BALÃO AMARELO

Pelas ruas empoeiradas no calor intenso, o menininho caminha com sua mãe. De vez em quando, ela sacode mãozinha firmemente encaixada na sua.
– Anda Zezinho!
Ele se esforça, mas é difícil acompanhar a mulher, no seu passo rápido e decidido. As pernas da criança são finas, a barriguinha estufada, os cabelos ressecados, espetados e quase sem cor definida.
– Ele está desnutrido, mãe, afirma a pediatra do posto onde o levou ontem, depois que ele passara a noite quase morrendo sem ar, numa crise de “laringite estridulosa “ que nome, mas o guardara porque a médica chamou um acadêmico e usando o corpinho exausto, dera toda uma aula à sua frente.
– Tome essas amostras grátis, mas cada caixa tem apenas três comprimidos, essas duas dão seis, e ele vai tomar três ao dia, de oito em oito horas.
A pediatra escreveu numa das caixinhas a posologia, passou com cuidado as cartelas metálicas para ela, amassou cansadamente, as duas outras, com o pé calçado no mocassim branco repintado dezenas de vezes, meio cambaio pelos pés inchados, fez um carinho no rostinho sofrido do meninozinho, piscou para ele um dos olhos edemaciados, e sorriu um sorriso de canoa, que iluminou, por momentos seu semblante em “moon face” e passou para ele um balão, já cheio, que fazia a enfermeira encher tão logo chegava. Uma espécie de mágica, doada por laboratórios-e quando não recebia os envelopes plásticos com as coloridas promessas, abria a bolsa, catava as moedas e pedia à Tetê, sempre bonachona, que fosse à papelaria na esquina e trouxesse uns.
Os balões faziam choros se trancarem, lágrimas pararem de escorrer, distraía os pequenos enquanto ela conversava com os acompanhantes, quase sempre as mães, as avós, às vezes uma vizinha.Muito poucas vezes, os pais, mas com essa leva de desempregados, agora mais homens traziam os filhos à consulta, a maioria parecendo constrangida ou excessivamente simpática:mesmo a médica sofrendo de insuficiência renal, o azul dos olhos, as roupas brancas eram um oásis no cotidiano daqueles homens...
A mãe do menininho foi embora com ele, depois que a injeção foi-lhe aplicada, fazendo-o chorar baixinho. Apressada. Sem dinheiro, ia rasgar a receita, mas pensou que talvez pudesse usá-la para obter algum e comprar a pinga. A água ardente, aguardente. Que descia queimando, agitava o estômago, mas a deixava sem fome, sobrando uns trocados para comprar chips para o filho. Ele gostava, parecia que era muito, ele brincava com uns discos pequenos que vinham de brinde e depois que ele dormia, ela juntava a outros e depois a vendê-los ao moço do violão, que fazia artesanato e vendia na porta da igreja .
Ele lixava pacientemente no chão áspero, dando-lhe uma forma de gota e depois pintava com esmalte de unhas. Transformava em palhetas, que vendia ou usava. Uma vez ela achou numa lixeira um pacotinho de lixas de unha, que levou para ele. O moço disse que não podia comprar, então ela lhe fez o presente.Ele ficou tão alegre, quanto se houvesse ganho um relógio.
– Diacho, como vou dar esse remédio na hora certa, se não tenho relógio?
A mãe olhou o pequeno. Estava sonolento, mas precisavam andar.
Ela sentou-o na beirada de um laguinho que havia na praça e com um lenço de cabelo esfarrapado, que molhou na água parada, limpou o rostinho da criança. O garotinho sentiu o hálito sempre mesclado ao álcool, que sua mãe exalava. Era a sua identidade. Ele aspirou e se encolheu, num calafrio. A sensação, para ele, era boa. A mulher, após o primeiro gole, deixava o segundo na boca e depois bochechava, para limpar os dentes. Por isso, mesmo que ainda não houvesse bebido, rescendia à cana. E ainda porque algumas vezes, a mão trêmula deixava cair a bebida nas roupas rotas.
Penteou os ralos cabelos cor-de-nada do garoto com os dedos frementes.
Abriu a sacola de nylon, dessas de feira onde carregava todos os seus pertences, achada num terreno baldio, onde se refugiara com o Zezinho quando fugira do marido. Ele era um traficante de menor escalão, que traficava drogas para um médio, que, por sua vez, traficava para um chefão... Numa noite, levantou-se para beber água e o ouviu combinado com um adolescente que era seu cão de guarda:
– Amanhã, tu entra aqui depois que os meninos forem para a escola. Passa fogo. Eu preciso trazer para cá a Manu, mas não posso dispensar a Jaca assim , sem mais nem menos, meu irmão. Ela sabe demais... O rapazinho, a quem ela se afeiçoara, quase um irmão, pau para toda obra, que morava no quartinho dos fundos, naquela casa onde ela pensava que era feliz, cuidando dos filhos, cozinhando, lavando, passando...
– Queima de arquivo, meu, sei comé...
– Queima de artigo, cara; tá véia e esmagrecida. Nem se compara à Manu.
Jaqueline era seu nome, mas ele, numa cruel gozação, a chamava de Jaca, Jacaré, no princío até achava graça, pensava que era por causa de seus dentes grandes e brancos, mas no último churrasco, a tal da Manu, a interpelara numa gozação cruel:
– Como é, Jaca, tu não vai deixar meu nego em paz não?
Jaqueline ficou assustada demais com a morte, encomendada. Só pensava no Zezinho. Para a escola, iam os quatro maiores. O caçula ficava com ela. Poderia ser morto.Rolava na cama, vespas a zumbir na cabeça atormentada. Não tinha família em Belo Horizonte. Todos moravam pra lá de Piau, num sítio. Não tivera tempo de fazer amigos, tanto serviço havia em casa, o marido exigente, dava-lhe safanões por qualquer coisa-o que era normal, homem é assim mesmo, consolava-se. E para evitar as agressões, corria para todo lado, além de se esforçar para que os filhos fizessem as tarefas escolares, sabendo tão pouco... De repente, o marido começou a trazer muita carne, andar bem vestido, chegou uma dia, com um carro, sabia lá de que marca, pois nunca chegara perto. Mais trabalho, roupa boa para lavar e passar e no dia em que derrubou o perfume dele, levou um tapa que a deixou bicuda por dias... Precisava fugir, mas como, para onde?
Virava-se na cama, quando sentiu o peso do Osvaldo na cama. Deitou-se e virou para ela. A mão de sempre a alcançou. Levantou a camisola de flanela gasta e colocou as pernas magras da mulher sobre os ombros. Sem uma palavra, com a violência de sempre. Ela sempre achara que o bicho-homem é assim mesmo. Beijos, palavras doces, carinhos, coisa de artista na Tv. Representação. No cotidiano, a mulher é usada. A perseguida é penetrada, as mordidas são as carícias. A ejaculação, um alívio: acabou, posso dormir... Mas dessa vez, lutou um pouco, enrijecendo-se .A vagina sempre elástica, cerrou-se. Dispaurenia. Gemeu de dor. Ele não ligou: forçou-a como pôde e terminou ali, no intróito mesmo.
Ela teve ódio, pela primeira vez.Ia mandar matá-la e a tomava como a um animal. As lágrimas caíram, mas mordeu os lençóis para não fazer barulho. Assim que o marido dormiu, levantou-se, calçando as chinelas de plástico ao pé da cama. Foi ao quarto onde os meninos dormiam, dois a dois. Apanhou Zezinho e saiu em disparada para a noite misteriosa.
Conheceu então o que é não ter um teto. Descansar em bancos de praça, pedir esmola em escadaria, ser escorraçada pelos mendigos de ponto certo, querer ir ao banheiro e entrar num bar imundo, comprar um pacote de chips para o pequeno, e enquanto ele esperava, ia usar o mictório. Menstruada, catava papel até juntar um chumaço e ia colocar, tremendo. Se havia água, lavava os genitais, o rosto, braços e pernas. Banho de gato, pensava, ouvindo a voz da avó usar essa expressão. Cansou de roubar aquela preciosidade, quando encontrava:papel higiênico. As regras pararam de vir depois que ficou muito desnutrida, quando tomava quase somente a pinga. No começo, andara pedindo emprego. No máximo, ganhava umas roupas, bananas para o filho, biscoitos velhos. Raramente um prato de comida. Ninguém queria uma empregada desconhecida, caquética e ainda por cima com o menino de nariz sempre escorrendo. Ele crescia assim, dormia no ninho dos braços maternos, comia chips, ganhava umas coisas que o encantavam. Naquele momento, o balão amarelo, que desafiava o azul do céu, quando ele olhava para cima , um prazer enorme. O barbante fino firmemente preso à mãozinha suada.
Então, na praça onde dormiam, às vezes, a mãe o sentou num banco e lhe disse muitas coisas .Que estava fraca. Que não tinha dinheiro. Que ele ia ficar em uma casa onde havia muita comida. Que quando perguntasse sua idade, dissesse que tinha cinco anos. Ele tem seis, mas é tão magrinho e pequeno, que vão pensar ser mais novo. Têm mais pena dos pequenininhos, a mãe revela. A tudo que perguntarem, ele deve dar um sorriso antes de responder. O sorriso dele era lindo, parecido com o da mãe que já não sabia sorrir. Que dissesse que a mãe morreu, ou sumiu. Melhor sumiu, pois um dia poderá voltar e decerto vão tratar melhor o filho, por isso.
Havia reparado numa casa onde morava um casal de idade, que passeava ali, de vez em quando, com um poodle. Tratariam bem seu menininho.
Treina um pouco com Zezinho o sorriso, as respostas. Atravessa a praça. Ele, amedrontada, não diz nada. Somente os olhinhos de jabuticaba estão úmidos.
Uma empregada gordinha e alegre vem atender. A mulher usa sua voz mais educada. Explica que havia chegado da roça, que lhe roubaram tudo quando saiu da rodoviária - uma das histórias urbanas mais comuns, que sempre ouvira na roça ou ali mesmo, da população rua. Pede, então, um pouco de água e pergunta se tinham algo para o menino comer.
Assim que a serviçal se retira dizendo que vai falar com a patroa, agarra-se ao filho, as lágrimas lembrando-se que estavam ali, para a dor. Repete ao garoto que deve sorrir... Ele a olha calado, o coraçãozinho bate qual o de uma avezinha assustada.Ela vai até ao portão, mas volta, abre a bolsa, pega a receita dobrada, coloca-a no bolso da camisa azul desbotada do filho. Abraça-o novamente, chorando.
Assim que ela sai correndo, o garoto vai atrás. Chama-a, em prantos. A mãe lhe foge... O barbante escorrega de sua mão e o balão foge, também. Abre um berreiro.
A empregada chega com a água e um prato cheio de comida e olha espantada o menininho magricela, desnutrido, tornado feio. Não sorridente, conforme as recomendações, mas num pranto sentido, a campânula avermelhada e inchada aparecendo pela boca escancarada, a camisetinha encharcada de lágrimas. Pergunta-lhe pela mãe, quando esta volta correndo. A gaguejar, explica que correra atrás do balão, agradece o prato de comida, a água. O menino agarra-se às suas pernas, suja de ranho o vestido materno, feliz da vida...
Estavam comendo no banco da praça, o balão amarrado na alça da bolsa, ambos exaustos pelo pequeno grande milagre, quando a moça de uniforme abriu o portão da casa e veio até eles. Explicou que estavam precisando de alguém para cuidar do cachorro, das flores e do quintal. Que a mulher poderia morar como filho num quartinho independente, perto da lavanderia. Que fossem conhecer dona Rita, uma mulher muito boa, mas muito boa mesmo...
Da janela de seu quarto, a senhora idosa acompanhara e compreendera o drama que se desenrolara à porta de sua casa. E inventara aquele trabalho extra.
Agora, mãe e filho têm teto e são felizes, anos depois. Todos os dias, a mãe leva o menino à escolinha. Não raro, ele carrega, orgulhosos um balão, que sempre quer amarelo, embora às vezes, possa ser azul ou vermelho, das outras cores que sobram no pacote.... O casal idoso tem muito carinho por ele, agora forte e corado, que vai com eles e um poodle à praça, enquanto o olhar materno os alcança do jardim bem cuidado. O poodle é outro, a vida é outra. O sorriso voltou aos dois rostos, tão parecidos. O menino e sua mãe. Acima deles, o sol portátil, cheio de ar, paira e dança a dança da simplicidade. Ficou muito simples serem felizes e bem alimentados, agora...

Clevane Pessoa Araújo Lopes

2 º lugar no Concurso de Ipatinga 2006, 6º Concurso Estadual de Contos, realizado pelo Clube de Escritores de Ipatinga - CEI, MG.