terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Um Tiro na Noite


Ilha de Fernando de Noronha-Rememórias (I)


Um Tiro na Noite

Havíamos chegado à Ilha de Fernando de Noronha com uma carga adicional;as gêmeas Cleomar e Cleoneide , adotadas por meus pais. Antes, já éramos três crianças: eu aos cinco anos, minha mana com três e meu primeiro irmão homem, com um ano e meses. Para minha mãe jovem e traquinas, a ilha era o sonho tornado real. Amanhecia de maiô e somente voltava à casa, na hora do almoço, conosco corados e alegres, as mãos cheias de conchas ,para cozinhar. Lembro-me dos sargentos gritando “Peixeeee” e deixando à porta de nossa casa, bicudos e outros frutos do mar.
Nossa casa ficava do lado da rua onde papai trabalhava como telegrafista, em frente à Igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Ao lado desta, moravam o médico e sua esposa.
Mamãe fora levada a visitar as masmorras, onde presos políticos ficavam. Celas nuas e úmidas, mas que muito a assustaram. Quando papai brincou e a trancou por fora, por um minuto, desmaiou.
Depois, assustava-se à toa, pois o barulho das águas contra as rochas de origem vulcânica, associado ao vento forte, às vezes provocava sons similares a gemidos. Os nativos disseram-lhe que eram as almas dos ali sofreram. O calçamento havia sido todo feito pelos prisioneiros, contavam. Hipersensível, eu pisava devagar, como se pudesse machucar as mãos que um dia ali labutaram. Amarrados diziam-me.
Mal podia imaginar. De lado, o deslumbramento da beleza paradisíaca, os piqueniques sob as pedras , as trilhas atrás de casa, onde íamos procurar figos suculentos, minha primeira comunhão, fazendo-nos ir de avião da Catalina a Recife, para as provas da costureira, e para a busca dos apetrechos: luvinhas de organdi com pérolas nos punhos, um missalzinho de madrepérola falsa, penso, o tercinho de prata, a grinalda de noivinha e o véu. O vestido gastara metros e metros de organdi, rendinhas fitas e cachinhos de muguet.

Eu comecei a ler muito cedo e então , podia decorar todo o catecismo, que trazia na ponta da língua: ”Há um só Deus em três pessoas, Pai, Filho e Espírito Santo” ..Este representado pela linda pombinha branca ...Deveria contrita, contar meus pecados ao padre:” Pai perdoai-me porque pequei, por pensamentos , palavras e obras”...Uma criancinha...Bem eu havia pedido a meu avô um boneca vestido de menino, com bonezinho e tudo. Minha mana Cleone, ganhou sua contrapartida: a bonequinha de rodado vestido. Vovó ficou zangada, porque o marido me atendera .”Meninas não brincam com meninos”, sentenciara. Não obstante mamãe costurar um vestido para meu moleque e trocarmos seu nome, lá no fundo, eu ficara muito chateada. Estaria pecando? Teria pecado porque brinquei com o garotinho? Não, os brinquedos da época não mostravam os genitais. Não havia aula de educação sexual. Tomavamos banho de calcinhas , se meu maninho estava junto, com seus calções .Depois que ele era retirado, alguém voltava para lavarmos entre as pernas. Não podíamos dizer palavrões. Meu pai, se ia xingar, dobrava o indicador e ...esbravejava “para dentro”. Não conseguíamos entender nada.

Uma vez, mamãe ouviu um barulho estranho. A luz se apagara numa tempestade. Ela passava , vela na mão, paras clarear a sala. O som estrondoso a fez dar um grito horripilante. E desmaiar. Eram os livros de uma prateleira pendurada precariamente (ali, não havia lugar para luxos),que havia desabado .

Lembro ainda de um militar que queria um filho homem e a mulher, com algumas bonequinhas de carne, esperava que da barriga diferente das outras vezes, chegasse o herdeiro. Nos Anos 50, não havia ultrassonografia. Contaram que quando nasceu outra filha, em Recife (usávamos o avião semanal para ir lá sempre que era necessário) ele abandonou o recinto. Bebeu dias, foi encontrado na linha do trem , não sei se propositalmente ,para morrer, ou por excesso de álcool. Depois, reconciliaram-se .Como se um menino fosse herdar uma coroa real.
Havia o Sgt Camilo, magro e mais alto que papiai , a quem chamávamos de tio e que vinha com papai comer os acepipes feitos por mamãe. Cada criança tinha direito a um litro de leite, então nos chegavam cinco. Ela fazia muitos bolos e doces, talvez da minha cota, pois jamais suportei o gosto de leite puro. Na ilha, havia lagartixas imensas, que não sei quem havia levado para acabar com os mosquitos e moscas, contavam os ilhéus. Lá, desenvolveram-se e se multiplicaram muito. Pareciam lagartos.
Um dia havia um tacho de doce em bolhas, no fogão. Uma delas desprendeu-se do teto e tchibum , na piscina efervescente. Quando mamãe lamentou, ele disse: ”Pode guardar, Madame, que eu como...Esse doce é muito gostoso para se jogar fora...”.E ,todos os dias, chegava com meu pai, para comer “doce de lagartixa”, como o chamávamos. "Argh", dizíamos, fazendo caretas. E ele ria:” Mas o tio Camilo não tirou o bichinho?”...

Uma vez, ele foi a Recife e trouxe-me um vestido tão lindo, que até hoje, lembro-me perfeitamente dele : de fustão branco, todo festonado na barra com linha vermelha, e a cada dez centímetros, subia em pela saia, sendo que nesse trecho, havia uns furos também circundados de festoné., Nos furos, fita de cetim número 1 era trançada. E se fazia acompanhar por um bolerinho também todo bordado.
O capelão criava a sobrinha mocinha, de quinze anos, e o sargento, solteiro, pediu que mamãe bancasse o cupido. A declaração foi feita lá em casa, com ele abraçado ao violão , a cada frase, um acorde... E casaram-se. Todo mundo comentava que a sobrinha do padre se apaixonara pelo sargento.
Um dia ,acordei com sede e calor. Sonolenta, ouvia o fascinante bater das ondas fortes contra as pedras na praia mais próxima . Ia chamar meu socorro, noturno, papai, que sempre ouvia meu chamado, quando um estampido se fez ouvir. Terrível, na ilha deserta de pessoas acordadas, o grande silêncio insular noturno, que contrastava com o barulho do oceano, foi cortado por esse tiro espantoso e inesperado.
Claro, devem ter me escondido os motivos , mas talvez não os soubessem . A esposa do médico, de camisola, em frente à penteadeira, levara o revólver à cabeça (ou seria ao coração?) e matara-se .Lembro-me de tê-la achado muito bonita, à janela, quando passava vindo da escola.
Quando adolescente, fiz uma lista de possibilidades : a suicida não poderia ser mãe. O marido a traíra. Ela traíra ao marido e fora descoberta. Sofria de uma doença grave. Casara-se amando a outro e não suportara a saudade...Os mistérios , o passado da Ilha a assustavam tanto quanto assustavam mamãe, que no entanto, era bem resiliente e adorava a vida lá. Estaria louca...Seria acostumada a vida social bem intensa e não suportara ilha.. O marido seria ciumentíssimo...Odiava sua vida sexual( eu não sabia nada sobre isso, mas lia nas revistas, que ...) . Mas por que se mataria?
Lembro-me de haver escrito uma história ficcional a respeito, mas no final, ela era morta e não cometera auto-extermínio. Para mim , era inconcebível que alguém concebesse a morte para si mesma...
Talvez tenha sido a minha primeira lição das coisas irreversíveis. Do nunca mais. Por mais que eu olhasse para a janela de sua casa, de onde jamais a vira sair, qual minha mãe, sempre explorando ao máximo aquele excesso de beleza pura.
Nunca mais ela poderia ser estar à janela. Teria preparado tudo? Tomado um banho, lavado e perfumado todos sete os orifícios do corpo, quais as chinesa a antigas ao se preparar para o marido? Vestido a camisola , deixado um bilhete, uma carta para a família? Ou agira numa fração de segundo, impulsivamente?

O novo médico, cuidou das gêmeas e ficou lá em casa, com a esposa , para melhor acompanhar o caso clínico delas . Mas isso contarei a seguir...

Clevane Pessoa de Araújo Lopes, Belo Horizonte, Publicado originalmente em http://www.jornalecos.net/pessoa30.htm (03/12/2006), pela atenção especial de Vânia Diniz.

O impossível
é imprevisível
só até acontecer
(Clevane Pessoa, em "Sombras feitas de Luz-Edit.Plurarts)

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